domingo, 19 de maio de 2013

Game Over

Daniel sempre fazia o percurso de casa pro trabalho, do trabalho pra casa entretido com seu PSP. Aquela coisa de viagem o entediava e a melhor coisa que fez foi comprar aquela maquininha. Vez ou outra apertava o Pause para descontrair, mas logo voltava ao jogo. Geralmente retornava para casa no mesmo ônibus em que voltavam vários estudantes. E numa dessas voltas notou Camile. Loira, lábios carnudos, bem gostosinha. E junto dela, Aline, morena, cabelos pretos cacheados. Não pôde reparar se ela também era gostosa porque quando seus olhos cruzaram com os dela, sentiu algo diferente. E ela nem tinha aquela coisa de olhos verdes ou azuis. Mas seus olhos pareciam brilhar. Voltou ao seu joguinho, mas toda hora parava e ficava admirando Aline.
Camile sempre descia no meio do caminho, Daniel descia no ponto de sempre e Aline seguia viagem. Não fazia nem idéia de onde ela morava. Um dia reparou que ela também o olhava. E que ela também era bem gostosinha. Eis que Daniel tinha dois problemas: depois que Camile descia do ônibus, Aline assumia um aspecto de cansaço, dor de cabeça, estresse, alguma coisa de “chateada” que se transformava num obstáculo para qualquer tentativa de aproximação, pois a mão dela na testa, apoiando a cabeça parecia dizer: “Ei, não me encha o saco. Não vê que não quero conversa?” ou qualquer coisa assim; E, para piorar, ele era extremamente tímido. “Como é que eu chego nela? Vou falar o quê: tudo bom? Você pega sempre esse ônibus? Cacete!” E novamente descia no seu ponto. E Aline seguia no ônibus.
Numa terça-feira, ele está no ponto, empolgado com o jogo que acabara de comprar: Daredevil. Enquanto as pessoas na fila xingam, reclamando da demora, ele nem se preocupa se o ônibus vem ou não. Só quer passar para a próxima fase. Como fazia sempre, apertou o Pause e girou a cabeça num movimento circular, tentando relaxar os músculos do pescoço que ficavam doloridos por culpa do jogo. Tomou um susto quando viu Aline e sua amiga paradas bem perto dele, na fila dos estudantes. E outro maior ainda quando ela deu um sorriso e ergueu levemente as sobrancelhas, cumprimentado-o. Daniel não sabe se respondeu também com um sorriso, se inclinou levemente a cabeça ou se acabou fazendo uma careta pra ela.
Tentou voltar a jogar mas perdeu feio pro seu oponente virtual. Para alívio dele o ônibus chegou e logo todos estavam entrando. Estava abobado, ficando vidrado naqueles olhinhos brilhantes. “Só faltava essa. Só eu mesmo pra me apaixonar por uma garota que não sei nem o nome”. Mas, depois daquele sorriso, tenho que fazer alguma coisa. Hoje eu falo com ela!” Ficou ansioso, aguardando o ponto em que Camile normalmente descia e então aproveitaria o lugar que ficaria livre. “É isso, vou na cara-dura!”.
Mas hoje, Camile não desceu. Parecia que ela seguiria até a casa de Aline para buscar algo, para dormir lá. “Ou o diabo que for. Tinha que ser hoje?” Pra completar seu suplício, entrou um bêbado no ônibus e começou a agir como todo bêbado, falando alto, mexendo com os outros. E o sujeito resolveu sentar justamente do lado de quem? Do pobre Daniel. Ele falava, gritava, gesticulava exageradamente. Exalava um cheiro acre de dias sem banho e dias se embebedando. As meninas riam e Daniel não sabia se era dele ou pra ele. Ficou tão perturbado que acabou descendo 5 pontos antes do seu.
Duas semanas se passaram e Daniel não voltou a ver Aline. Numa quarta-feira, chegou no ponto e o ônibus já estava lá. Entrou e se acomodou num dos poucos bancos vazios. Apertou o Start do PSP e começou mais uma partida. Viagem tranquila, estava quase zerando o jogo e deu uma espiada para ver onde estava. “Quase chegando em casa”.
Os olhos de Aline surgiram do nada em sua mente. Percorreu o interior do ônibus, distraído, pensando se de repente não teria passado por ela sem notá-la. O que era pouco provável. Mas então viu Camile, 4 fileiras de bancos à frente de onde estava. Sozinha. Embora as duas sempre andassem juntas, olhou todo o ônibus procurando por Aline, mas ela não estava lá. Curiosamente a loirinha passou de onde sempre descia, e ele deduziu que ela só podia estar indo na casa de Aline. Num impulso, resolveu não descer no ponto de sempre. Quando Camile desceu, teve que correr para também saltar naquele ponto. Assim que o ônibus partiu e ela ía atravessar a rua, ele tocou em seu braço:
– Oi.
– …oi!
– Então… cadê a sua amiga?
– Aline?! Tá doente. Tô indo na casa dela e você?
– Eu o quê?
– Está indo pra onde? O seu ponto era lá atrás, não?
– Er… era. É que eu queria saber dela e nem sei de onde veio a ideia de vir atrás de você…
– Mas você vai na casa dela? Acho que o pai dela não vai gostar muito.
– Não! Era mais pra saber dela. Foi uma ideia idiota mesmo. É melhor ir embora.
– Já que você nem perguntou o meu nome, também não vou perguntar o seu…
– Ae caramba. Desculpa. Sou Daniel. E você…
– Camile.
– E o da sua amiga você já disse que é Aline…
– Isso. Ela mora ali – ela aponta trocando os cadernos de mão e reparando que ele tamborilava os dedos na perna mostrando nervosismo – virando a esquina é a terceira casa desse lado mesmo.
– Ah, legal. Bom, eu já vou indo. Prazer em te conhecer.
– Mas você veio até aqui e não vai lá falar com ela?
– Imagina… Você acabou de falar que o pai dela é bravo.
– É. O seu Roberto fica bem zangado com esse tipo de coisa. Acho que todo pai é ciumento, ainda mais com filha única. Mas ele é super gente boa. E tem que ele só chega do trabalho lá pelas nove.
– Você podia ter falado isso antes.
Daniel ficou balançando o corpo, como um barco solto na tormenta, pra frente e pra trás. Camile notou e riu.
– Ai meu Deus. É melhor você ir embora mesmo.
– Porque?
Ela segurou seu braço esquerdo com a mão livre, tentando equilibrá-lo.
– Porque você é muito tímido.
– E… e tem algum mal nisso?
– Pior que tem.
Camile, ainda segurando seu braço, chega bem perto dele. Os rostos ficam perigosamente próximos. Ela sente o corpo dele tremer. Aperta Daniel contra o seu corpo e cola sua boca na dele. O corpo dele agora vibra. As mãos que antes seguravam o PSP, agora estão enlaçadas na cintura dela. O brinquedo está caído no chão. Camile se afasta um pouco e solta a respiração. Daniel está aturdido sem saber o que aconteceu. Ela apenas fala:
– É que eu me descontrolo perto de tímidos…

® Postado no Blog antigo em 24.09.2004

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